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A genialidade de Setembrino que mudou Santa Maria

data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Germano Rorato (Diário/BD)
Músico morreu aos 88 anos

Fazer e viver da música sempre foi algo que nunca soou muito bem aos ouvidos da maioria das pessoas. Agora imagine o cenário: na longínqua década de 1950, em uma cidade encravada no sul do Brasil, um jovem de 17 anos e, ainda, negro, tentar isso num município sulista. Mas vocação e dom, cedo ou tarde, se manifestam e, aí, quando isso acontece, surge sempre algo único e raro. A genialidade do Maestro Setembrino, que morreu aos 88 anos, no último sábado, em Santa Maria, evidencia a potencialidade e o quão poderoso é o papel transformador da música. Foi pelas mãos dele que Santa Maria por muito tempo mereceu o selo de Cidade Cultura.  

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Mas, por vezes, nem sempre basta ser um gigante na música - ou na área que for -, ainda mais quando se é negro. O preconceito e o racismo ainda servem, infelizmente, de modelo a quase toda terra gaúcha. Somos ainda um povo que enaltece sua raiz europeia - seja alemã, italiana, polonesa... - e despreza e se envergonha do gene e do sangue africano que também nos moldou e construiu nossa história forjada pelas mãos calejadas de negros livres, que foram colocados sob o jugo de gaúchos e europeus que perpetuaram a cultura escravocrata e de uma inexistente e absurda superioridade.  

Os quadros da nossa história ainda trazem as imagens de um Estado construído por gente branca europeia. É grife, para muitos tupiniquins, falar que são "made in" Europa e se envaidecem ao dizer "somos italianos, alemães...". Esquecem, esses mesmos, que lá fora (no Exterior) nenhum estrangeiro dirá o contrário. É o famoso complexo de vira-lata.

Digo isso pra falar do negro Maestro Setembrino, que soube na pele o que é estigma e o quão pesado pode ser a cor na vida de uma pessoa. Falei com ele uma vez, para uma matéria, e me recordo de ele ter me dito: "a cor fere". Ele, contudo, não falou com rancor ou amargura, tampouco deu sequência ao assunto. Talvez a escolha em não falar sobre racismo levasse em conta o fato de ter ficado calejado com as rasteiras de gente preconceituosa ou, quem sabe, por não se importar mesmo. O que lhe fazia falar, e muito, era a música e suas histórias.

Em nossa conversa, ele me disse que chegou a Santa Maria com 17 anos e foi com o padrinho dele, que aprendeu a tocar saxofone. Aliás, por mais que dominasse outros instrumentos, ele tinha certeza de que o saxofone o escolhera. Nessa relação de entrega e devoção mútua, Setembrino não descuidava, nas apresentações, do traje: sempre com roupas e sapato (de duas cores). Justamente pelo estilo de vestir e, principalmente, de tocar, era impossível não ver nele muito do que era feito no jazz norte-americano.

Sorriso largo e um bom humor admirável, era a receita seja na vida e, claro, no saxofone, dizia. Determinação, reforçava, que o levou a servir por mais de 30 anos à Brigada Militar e, depois, a se formar em Música pela UFSM. 

Setembrino soube fazer do saxofone o instrumento de difusão de dois ritmos - o jazz e o blues - na cultura santa-mariense. Ambos os ritmos de origem negra e escrava são o que há de mais belo e verdadeiro para quem aprecia boa música, seja por sua intensidade, vigor ou originalidade que eles proporcionam.

Os negros arrancados da África que vieram para cá, para virarem moeda de brancos escravocratas, tinham apenas uma chance de sobreviverem: serem bons e úteis instrumentos de trabalho. A música entoada, durante o trabalho pesado e desumano no campo, era uma forma de amenizar a dureza de dias intermináveis e angustiantes.

Esse era o chamado "código negro" que disseminou esses dois ritmos pelo mundo. E, aqui, em Santa Maria, isso se deu pelas mãos do nosso único maestro, que levou a música de forma democrática dos cabarés ao teatro municipal.

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Marcelo Martins